ARTIGO:
UMA REVISÃO DO PROCESSO DE ORIENTÇÃO PROFISSIONAL
SEGUNDO O CONCEITO DE "INDIVIDUAÇÃO"
Marcelo dos Santos Ribeiro da Cunha
UNIFENAS (2017)
Introdução
Como é digno de nota, hoje em dia o mundo não dá espaço para o desenvolvimento interior das pessoas. Toda a cultura e meios de produção estão voltados para o exterior, para o status, para a competição, para o exibicionismo e sensacionalismo - numa absurda extroversão (DOS SANTOS 1976, p. 81-85; WHITMONT 2000, p. 16-17 ). Como aponta a Psicologia Junguiana, todo desequilíbrio comportamental vai causar, internamente, um movimento de igual intensidade e sentido oposto. Assim, tem-se uma sociedade doente, que carrega os sintomas psíquicos e psicológicos causados por tamanho descompasso.
O jovem que tem, pela frente, a decisão profissional, sofre terrivelmente com esse cenário. Ele não consegue ouvir seu interior ou se posicionar a respeito do seu desenvolvimento psicológico para tomar a melhor decisão. O mercado, escasso e competitivo e a mídia estridente fazem barulho demais para que ele consiga se ouvir. E os processos de Orientação Profissional (OP) comuns na atualidade não facilitam isso.
Estudos comprovam que a automação ceifará milhões de vagas de trabalho nos próximos anos (SHEWAN 2017), e há quem diga que se usássemos toda a tecnologia disponível na atualidade, apenas 500 milhões de pessoas fariam todo o trabalho do mundo inteiro. Se, de um lado, as redes sociais criam uma vitrine e uma competição de vidas luxuosas, de outro, tem-se um mundo imerso em crises ecológicas, sociais, econômicas e de refugiados. Talvez, na história da humanidade, nunca foram tão necessárias pessoas cientes da sua vocação, para conseguirem se decidir a despeito de toda essa pressão do mercado de trabalho, e ao mesmo tempo, darem a sua contribuição, única e necessária, para ajudar o mundo a sair de tantas crises.
O presente trabalho1 apresenta a hipótese de que o trabalho de orientação profissional, renovado pelo conhecimento do “processo de individuação” da Psicologia Analítica poderá ajudar os jovens sobremaneira a ouvirem a sua alma, a fim de darem a melhor resposta a si e ao mundo sobre sua decisão profissional.
DESENVOLVIMENTO
Marie Louise Von Franz (1964, p 160-161) afirma que Jung, ao analisar mais de 80 mil sonhos em sua vida de terapeuta, percebeu que a sequência dos sonhos mostram um movimento lento de desenvolvimento e crescimento psicológico do ser humano. Esse processo, denominado de “Individuação”, é regulado pelo centro do psiquismo, que Jung intitulou de “Self”. Esse conceito condiz com uma imagem recorrente nas lendas de diferentes povos e culturas, que fala de um ser superior que habita o interior da pessoa, guia-a, protege-a e a inspira a crescer.
Dos Santos (1976, p. 65) define o processo de individuação como o caminho pelo qual o indivíduo chega ao conhecimento de si e ao contato com seu inconsciente, tanto pessoal quanto coletivo. O seu objetivo seria a conexão entre ego e Self, permitindo a realização da sua personalidade.
No entanto, esse caminho de desenvolvimento psicológico, impulsionado pelo centro organizador, dependerá da vontade do ego de “ouvir ou não as suas mensagens”, o quão aberto ele estará para a orientação proveniente de um outro ponto, que não a sede da consciência:
“Tudo acontece como se o ego não tivesse sido produzido pela natureza para seguir ilimitadamente os seus próprios impulsos arbitrários, e sim para ajudar a realizar, verdadeiramente, a totalidade da psique. É o ego que ilumina o sistema inteiro, permitindo que ganhe consciência e, portanto, que se torne realizado. Se, por exemplo, possuo algum dom artístico de que meu ego não está consciente, este talento não se desenvolve e é como se fora inexistentes. Só posso trazê-lo à realidade se o meu ego o notar. A totalidade inata, mas escondida, da psique, não é a mesma coisa que uma totalidade plenamente realizada e vivida.” (VON FRANZ 1964, 162).
Essa perspectiva essencialista e pautada na dimensão inconsciente, da Psicologia Analítica, traz nova luz aos esforços e estudos de Orientação Vocacional e Profissional do nosso tempo. A influência do discurso capitalista, competitivo e de resultado, esquece-se do processo de desenvolvimento dos jovens, rumo à vida profissional. O foco está no status das profissões, no contracheque de cada carreira, em quantas vagas há para cada candidato, no preço das mensalidades, e na pressa em se formar e começar a ganhar o próprio dinheiro. O processo de desenvolvimento psicológico dos jovens é ignorado, como se todos estivessem prontos para fazer a escolha das suas vidas na última badalada do relógio: o fim do terceiro ano. Uma comprovação disso é a quantidade de alunos desistentes e repetentes no ensino superior, além daqueles que circundam entre tantas tentativas frustradas de profissões.
Se o processo consciente é ignorado, sendo atropelado pelos critérios de mercado, quiçá o processo inconsciente de individuação, como exposto acima, ainda mais complexo e interno.
Isso pode ser comprovado em uma das mais famosas publicações de orientação profissional do Brasil, presente tanto nas bancas quanto no formato online: o “Guia do Estudante”. Em uma sessão atual sobre a indecisão profissional, os “orientadores online” sugerem ao leitor que a resolva analisando seus pontos fortes e fracos, perguntando a opinião de pais e amigos, e vendo em qual carreira se enquadram mais as tarefas que se inclina a fazer com mais facilidade. E, é claro, precisa também, observar as tendências de mercado (PEOPLE & RESULTS 2017). Ou seja: numa posição absolutamente voltada para o exterior, em extroversão, esquecem-se que a decisão começa com o indivíduo ouvindo a si mesmo, sua natureza psicológica.
As afirmações de Von Franz e Jung são muito contundentes, se levadas a sério: é impossível se escolher uma profissão se o candidato não tem contato com seu centro regulador. Apenas os talentos e personalidades conscientes não são suficientes para pautar a escolha de uma vida inteira. Aquilo que for ignorado pela consciência nesse momento, retornará inevitavelmente, como sintoma, como crise profissional, como falta de realização.
Um problema grave na atualidade absurdamente extrovertida em que vivemos, é que o mundo interior acaba totalmente esquecido. Por não saberem que devem lidar com esse processo de individuação, e as suas características, os jovens são entregues ao mercado como cordeiros à boca de lobos: sua ingenuidade sobre os fatores mais preponderantes a respeito da sua própria felicidade, os interiores, são solapados pelas determinações do cursinho, das revistas, dos sites, dos colegas, e de quaisquer outras fontes que aplaquem a angústia dessa decisão com um palpite qualquer. Decisão precipitada sobre a qual, sozinhos, depois, sofrerão as consequências.
Nessas circunstâncias, todo acirramento racional, extrovertido e egóico será um entrave para se escutar o chamado (“vocare”, em latim) mais fundamental do Self:
“... este aspecto ativo e criador do núcleo psíquico só pode entrar em ação quando o ego se desembaraça de todo projeto determinado e ambicioso em benefício de uma forma de existência mais profunda, mais fundamental. O ego deve ser capaz de ouvir atentamente e de entregar-se, sem qualquer outro propósito ou objetivo, ao impulso interior de crescimento (...) é necessário renunciar à atitude utilitarista de planejamentos conscientes para poder dar lugar a um crescimento interior da nossa personalidade” (VON FRANZ 1964, p. 162, 163).
Assim sendo, a vontade de “dar orgulho aos pais ou a namorada”, ou de perseguir as estatísticas do ENEM não vão se coadunar com essa verdade inata e interior. Enquanto o ego é imediatista, e trabalha apenas com o que consegue conhecer e se lembrar hoje, o Self possui uma visão e sabedoria diametralmente maiores: “(...) em lugar de pensarmos em ‘que devemos fazer’, ou ‘o que se considera melhor fazer’, ou ‘o que se faz habitualmente’ etc. É preciso apenas ouvir para poder compreender o que a totalidade interior - o self - quer que façamos, aqui e agora (...)”. (VON FRANZ 1964, p. 163). Parece que Von Franz fala para uma fila de candidatos do ENEM, esperando os portões se abrirem.
A uniformidade dos discursos midiáticos e consumistas contrastam com essa tendência “por uma auto-realização criadora e única” (p. 164). Soam como um grande barulho, impedindo a audição daquela voz, sussurrada internamente.
É um processo desafiador, porque ele impele o indivíduo a ter contato com partes dele que não conhecia, partes sombrias, singulares. Isso contrasta com o momento da adolescência-juventude, quando o indivíduo quer pertencer ao grupo, ao bando, ser igual, ser reconhecido, para não se sentir só. Mas não há outro jeito de se fazer essa caminhada, senão sozinho. Daí “individuação”, sem divisões, não mais misturado, mas único. Continuar fundido com o grupo, com os pais, ou com os desejos que a mídia vende e impõe poderá jogar esse jovem no “tédio mortal” a que Von Franz diz respeito (p. 166). Normalmente ele vem disfarçado de frustração com as coisas exteriores (a cidade, o professor da nova faculdade, o alojamento estudantil, os colegas de sala, alguma matéria), mas fala, no fundo, do “apelo” do Self por ser ouvido.
Ao entrar em contato com o seu lado oculto, inevitavelmente os aspectos sombrios da personalidade emergirão. Erros e defeitos que a pessoa, com facilidade, acusa nos outros, mas tem grande dificuldade de reconhecê-los em si (WHITMONT 2000, pp 144-152). Isso não é algo normalmente abrangido por um processo de Orientação Profissional, que tem um número mais ou menos fixo de sessões, um estilo positivo e esperançoso, e evita ter contato com elementos inconscientes ou clínicos da personalidade.
Ao contrário disso, Jung já afirmava em 1923, sobre a importância da Psicologia Analítica para a Educação, que a formação dos adolescentes e dos adultos deveria continuar para bem além da faculdade, pois: “se abandona ao critério e à ignorância do indivíduo a solução de todos os problemas futuros e complicados da vida”, como, poder-se-ia incluir, a decisão profissional. Isso seria o motivo de“tantos casamentos desajustados e infelizes, assim como inúmeras decepções na vida profissional (...)” pois eles vivem “na mais completa ignorância das coisas principais da vida”(JUNG 1981, p. 61).
Nesse trecho, Jung fala da vida interior, que ele chama de “autoconhecimento”, conhecimento singular de cada indivíduo, que é crucial à realização dele mesmo. Ignorar os fatores, como os mencionados até aqui, e pautar a decisão profissional apenas em dados de mercado e estatísticos seria como ancorar um barco noutro. Para alcançar esse conhecimento, Jung sinaliza o caminho seguro dos sonhos (p. 63), para além das inúmeras subjetivações possíveis, o único “processo psíquico absolutamente objetivo”. O sonho, nessa concepção, tem a função de retratar as tendências “da personalidade, as quais são fundamentais e de importância vital. Seu significado pode ter importância para a vida toda ou apenas para um dado momento. A respeito dessas coisas faz o sonho uma constatação objetiva, sem importar-se com os desejos conscientes e as convicções da pessoa.” (p. 66).
Vemos dessa forma, que uma Orientação Profissional que não contempla a vida inconsciente do cliente, e para isso, não leva em conta a produção onírica dele, não alcançará o mais elementar para essa decisão, nem as tendências, ainda ocultas da personalidade, mas que darão forma tanto à vida profissional como todos os demais aspectos da realidade dessa pessoa.
Isso não elimina a serventia dos processos de orientação profissional atuais, mas relativiza muito seus resultados. Na ânsia de aplacar a angústia, o jovem aceita qualquer indicação dada com convicção (como no “discurso do mestre”, em Lacan), ainda mais se esse se parecer científica, ou repetir as convicções conscientes do próprio cliente, refletidas nos testes e atividades. Porém, embora decidido, a angústia tenderá a voltar, consciente ou disfarçada de pequenas frustrações, através dos sintomas e demais apelos que o Self provocar.
Assim, os conselhos provenientes, de forma direta ou indireta, dos processos de orientação profissional comuns atualmente soam inócuos diante da singularidade inconsciente:
“(...) a trajetória da vida é tão individual que certamente nenhum conselheiro, por mais competente que fosse, poder-lhes-ia prescrever o único caminho certo. Por isso devemos fazer com que a própria alma da pessoa venha a falar, a fim de que esta compreenda, a partir de seu próprio íntimo, qual é a sua situação verdadeira.” (JUNG 1981, p. 66).
CONCLUSÃO
Com base no exposto, pretendeu-se comprovar a importância do conceito de Individuação na condução de processos de Orientação Profissional. Apesar de todas as contingências fluidas da nossa atualidade, o jovem que esboça sua decisão vocacional precisa ir além das circunstâncias dadas e imediatas, para pautar sua decisão em algo mais confiável e objetivo. O mundo inconsciente, trabalhado através dos sonhos, pode ajudá-lo a integrar importantes partes da sua personalidade, a fim de que não se assuste consigo e suas reações, ao longo da vida, depois que a decisão profissional é tomada.
O mundo atual precisa de profissionais realizados, felizes nas suas vocações, para ajudá-lo a sair de tantas crises. Precisa de pessoas responsáveis com seus próprios processos de individuação, para ajudar o mundo a sair da estagnação do seu processo de individuação global.
Recomenda-se mais pesquisas relacionando Orientação Profissional e Processo de Individuação, devido à falta de materiais sobre o tema, e a importância dele para um país jovem como o Brasil, ou para o mundo atual, cada vez mais escassez crescente de postos de emprego.
REFERÊNCIAS
DOS SANTOS, Cacilda Cuba. Individuação junguiana. São Paulo: Sarvier, 1976.
JUNG, Carl Gustav. O desenvolvimento da personalidade. Petrópolis: Editora Vozes, 1981, Cap. III, pp 51-66.
PEOPLE & RESULTS. Não sei qual é meu “dom”, ou qual profissão escolher. E-Guia do Estudante. São Paulo, 21 set 2017. Grupo Abril. Orientação Profissional. Disponível em
SHEWAN, Dan. Robots will destroy our jobs - and we’re not ready for it. The Guardian, Inglaterra, 11 de janeiro de 2017. Technology. Disponível em:
VON FRANZ, Marie-Louise. V. O processo de individuação. In: JUNG, C. G. (org.). O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 9ª ed, 1964, pp 158-229.
WHITMONT, E. A busca do símbolo. Conceitos básicos da Psicologia Analítica. São Paulo: Cultrix, 2000.
NOTAS DE RODAPÉ
1 Trabalho apresentado na Pós-Graduação em Psicologia Analítica, UNIFENAS (2017). Orientadora: Profª. Drª Denise Amorelli Silveira – CRP 04/1777.