ARTIGO:
O PERIGO POR TRÁS DOS COMPLEXOS PSICOLÓGICOS
- ilustrado por uma interpretação junguiana do filme
"o Médico e o Monstro" (2003)
Marcelo dos Santos Ribeiro da Cunha
UNIFENAS (2017)
Introdução
Os aspectos psicológicos dos seres humanos sempre trouxeram fascínio às artes. Como podem, os humanos não serem os senhores de seus desejos e destinos, apesar de toda a tecnologia e racionalidade? O que há, dentro de nós, além de nossos pensamentos conscientes?
Em especial nesta obra da literatura, usada como pano de fundo do presente trabalho, essas perguntas se atualizam e revitalizam. “O médico e o monstro” é um romance gótico de 130 anos, do escritor escocês Robert Louis Stevenson, que está entre as precursoras da ficção científica e entre os livros que mais sofreram adaptações para os palcos e o cinema. Desde 1886 teve versão radiofônica, quadrinhos, desenhos animados, músicas, filmes ao original e paródias. “Remakes” originados em diversos países, variando do drama, terror à comédia – como o contemporâneo “Professor Aloprado”. Segundo o autor, o tema do filme veio-lhe em sonho, e com certeza, para causar tamanha fascinação e repercussão tão duradoura, essa obra fala de elementos essenciais da alma humana, com maestria. (STRANGE CASE OF DR JEKYLL AND MR HYDE 2017; SUPPIA 2005).
Para a presente análise, utilizaremos, dentre tantas versões, a cinematográfica de 2003, do diretor Maurice Phillips (Disponível em português no Youtube sob o título “O Médico e o Monstro”: https://www.youtube.com/watch?v=ssrniMvmf3I&index=18&list=PLaub_q6OvquQD3zrwW3pcwmlJC0OgvPSL&t=4s). O presente trabalho hipotetiza que o filme citado, devido a força arquetípica do seu argumento, ilustra de forma valiosa a teoria dos complexos psicológicos de Carl Jung, o que será mostrado a seguir.
DESENVOLVIMENTO
Para a Psicologia Analítica, complexos psicológicos são “agrupamentos de ideias de acento emocional no inconsciente (..., que agem como) fatores específicos de perturbação do processo psíquico normal” (JACOBI 1995, p. 16 e 17). Quando acionados “tornam-se (...) capazes de fazer aberta oposição às intenções do ‘eu’ consciente, de romper a sua unidade, de se separar e se comportar como se fosse um corpo estranho (...) na esfera consciente.” (JACOBI 1995, p. 18).
Tal pensamento parece uma afronta ao ambiente do filme inglês “O médico e o monstro”, de 2003. Londres da época vitoriana era marcada pelo abismo entre os ricos, industriários, e os pobres “miseráveis”. Os fidalgos se julgavam com uma natureza superior, que justificava e naturalizava sua supremacia. Esse tipo de pensamento é ilustrado na fala da madame Rachel Carew, em um jantar social na presença do Dr. Jekyll (00:15:10): “É ridículo dizer que somos todos iguais. Nem todos têm tendências criminosas. E nem todos somos animais. Há um mundo de diferenças entre minha filha e sua empregada. Um mundo de educação”.
A psicologia criminal incipiente da época buscava identificar a natureza criminosa, e não enxergava as questões sociais como fatores de criminalização ou a semelhança psicológica entre as pessoas de todas as classes. Por outro lado, a crença na razão, elogiada pelo iluminismo e, mais recentemente, pelo positivismo, não dava espaço para se suspeitar que poderia haver algo incontrolável dentro do ser humano, que nos aproximasse mais dos animais, ou um dos outros. A época dos títulos de nobreza e da etiqueta palaciana exaltava o comportamento “segundo padrões impecáveis” – como diz Sir Danvers, noutro momento, ao Dr. Jekyll. Nessa sociedade o ego consciente reina sozinho, como se fosse o único existente no psiquismo. Ignora, ele, a força dos complexos.
Essa força foi primeiramente notada por Jung ao realizar o teste de associação de palavras, no Hospital Burghôlzli, em Zurique. De forma fácil e empírica, Jung pode perceber que tanto as respostas verbais como não verbais dos pacientes sofriam nítidas interferências, atrapalhando o curso normal das associações, e se relacionando claramente a história da patologia de cada paciente (HOPCKE 2012, p. 28). A isso ele deu o nome de “complexo de tonalidade afetiva”. O termo “complexo” já tivera sido usado por outros estudiosos (como Herbart, Mach, Breuer e Freud), mas é em Jung que ele denota essa estrutura que associa representações, pensamentos e lembranças com forte carga emocional (PIERI 2002, p. 101).
Essas estruturas têm razoável autonomia no psiquismo, fazendo Jung declarar que, por vezes, elas nos têm:
“A existência dos complexos põe seriamente em dúvida o postulado ingênuo da unidade da consciência que é identificada com a ’psique’, e o da supremacia da vontade. Toda constelação de complexos implica em um estado perturbado de consciência e se dificultam mais ou menos as intenções da vontade, quando não se tornam de todo impossíveis. A própria memória (...) é profundamente afetada. (...) De fato, um complexo ativo nos coloca por algum tempo num estado de não-liberdade, de pensamentos obsessivos e ações compulsivas para os quais, sob certas circunstâncias, o conceito jurídico de imputabilidade limitada seria o único válido” (JUNG 1986, p. 30 e 31).
Dr. Henry Jekyll é a melhor ilustração para a declaração de Jung. Vivendo em 1846, ele é um cavalheiro, filho de um médico da sociedade, que decidiu seguir a carreira do pai. Ele mesmo diz, no filme, que sufocou seus verdadeiros sentimentos para ocupar o devido lugar na sociedade, de um dos mais respeitados na sua profissão. No entanto, Jekyll insiste em falar e manter uma pesquisa sobre um composto químico que tenta desenvolver, que separará o bem do mau, dentro do ser humano.
A diretoria do hospital o repreende por falar das “suas próprias teorias médicas”, já que “suas opiniões podem causar má impressão no público” (00:06:04), o que conflitaria com a imagem de filho do fundador do hospital. Vemos, já nessa cena, o conflito entre velho e o novo, o individual e o coletivo, a persona e a sombra. As regras da sociedade, o culto a imagem, o conformismo e as aparências são os argumentos da diretoria do hospital para inibir a inquietação pessoal e criativa de Jekyll. Isso leva o comitê a suspender os fundos para a pesquisa de Henry: o que poderíamos ver como uma metáfora para o conflito psíquico e a decorrente estagnação de energia; o ego fica sem recursos para continuar.
No entanto, embora sensível para as questões interiores, Jekyll tenta controlá-las com compostos químicos, algo comparável à medicalização das questões psíquicas, na contemporaneidade. Como o paciente que quer, de todo jeito, um remédio que estirpe o seu sintoma, ele se nega a estudar o que lhe inquieta, e ver sua relação com esse “corpo estranho”. É o que Dr. Jekyll deixa claro no seu discurso, num jantar social (00:14:17): “se eu conseguisse separar nossas duas naturezas... e controlá-las, aí o homem poderia ser livre de tudo o que o corrompe nesse mundo”. Apesar da sensibilidade de Jekyll, domina-o sua sede egóica de controle, e com isso ele nega que a sombra – sua e a do mundo – tenha potencialidades ou finalidades no desenvolvimento psíquico.
Mais do que isso, Jekyll é acusado pelo colega de querer “brincar de ser deus”, com suas experiências, ao que responde: “e se Deus não existir?”. Jekyll não nega dignidade apenas a sombra, mas inconscientemente nega a qualquer outro elemento do psiquismo, como o Self. Apesar de denunciar, com sua postura, a fragilidade do pensamento egóico da sua sociedade, ele usa também um raciocínio de hegemonia do ego para se relacionar com o seu interior.
Nesse ínterim, Jekyll é tomado pela compulsão do complexo. Como ele mesmo diz, “como a mariposa que voa para a luz”, ele não consegue aguardar que lhe seja concedido um paciente humano, e testa a droga em si mesmo, após ver que ela, aparentemente, funcionara em animais. Desse ponto em diante da película a vida de Jekyll se torna a mais profunda ilustração do que Jung disse no excerto “pensamentos obsessivos e ações compulsivas”. De dia Dr. Jekyll está compulsivamente investido das suas experiências científicas, que logram cada vez pior. Nas noites seguintes surge Mr. Hyde, a outra personalidade de Jekyll, que é dado às piores práticas sociais, ao vício do prazer, a tortura e crimes hediondos, que se repetem e ganham cada vez mais gravidade.
Uma figura interessante aparece nesse ponto do filme: um menino, Ned Chandler, um dos empregados do Dr. Jekyll. Ele é o único que sabe das duas personalidades de Jekyll, e o encobre para suborná-lo. O menino, com isso, vai se tornando cada vez mais abusado e insolente, e até rouba whisky e charutos da casa, sem que Jekyll possa fazer nada, devido sua obsessão pelas experiências. Essa imagem nos concede outra metáfora interessante do complexo: tomado pela obsessão, a casa da “consciência e da vontade” se acham perturbados. E o ego deixa de ser dono da própria personalidade, um menino reina em seu lugar. Elementos, muitas vezes de origem infantil, do inconsciente pessoal, e associados a elementos mais profundos dos arquétipos, drenarão as energias do ego, que se verá invadido e fraco para assumir seus atos e pensamentos.
CONCLUSÃO
Apesar do remorso após cada ataque de Hyde, Jekyll diz se sentir vitalizado com as aparições dele. No entanto o médico não é capaz de assimilar essa influência da sombra e a energia resultante. Ele é vítima dela como alguém invadido, o que é ilustrado fisicamente na cena de tempo 01:32:40. O monstro, na alucinação de Jekyll, agarra o doutor, já sem forças, quase o morde, e então entra em seu corpo dizendo “bem-vindo”. O complexo cresceu de tal forma a enfraquecer e roubar energia do complexo ego. Se outra definição de complexo é personalidade parcial, seu crescimento pode levar a completa desintegração da psique (JACOBI 1995, p. 21).
Na trama do filme, quanto mais Jekyll tenta eliminar a influência de Hyde, mais ele sucumbe e se enfraquece, já que o faz de forma projetada. Com a percepção e memórias prejudicadas pelo complexo – como afirmara Jung (1986, 30-31) – Jekyll não consegue se dar conta a tempo ou evitar que o complexo destrua sua profissão, sua reputação e seus relacionamentos. Semelhante situação é comumente percebida na clínica, com pacientes que foram acometidos por seus complexos, e relatam a fase complexual como a assistirem um vendaval passar em suas vidas.
Jung diz que os complexos somente podem ser enfraquecidos quando conscientizados, algo preponderante na terapêutica. Caso contrário, sua numinosidade leva o indivíduo a “devoção inerte” (JACOBI 1995, p. 20). Podemos acreditar que isso ocorreu com Dr. Jekyll devido sua infantilidade e fraqueza egóicas. “Quanto mais fraca for a capacidade de auto-afirmação do ‘eu’ contra as torrentes de influências psíquicas internas e externas” mais ele estará sujeito a ação e personificação dos complexos, vivendo-os, até mesmo, de forma projetada “como uma entidade (...) ameaçadora”, como nas ideias de perseguição e paranoia (JACOBI 1995, p. 24-25).
Jekyll não vê outra saída e punição para Hyde a não ser o suicídio. Ele se envenena para eliminar Hyde. Embora autêntico, a tentativa de Jekyll de “je kyll”, “eu mato” (francês e inglês), matar o que estava escondido (“to hide” - verbo, “esconder” em inglês), não foi a saída mais saudável (BBC 2014). O jogo de palavras entrega o sentido. Tamponar o vulcão não evitou sua erupção. A fragmentação e morte da consciência foi sua consequência. Uma linda obra para ilustrar a diversidade de conteúdos psíquicos em cada ser humano.
REFERÊNCIAS
BBC. The names Jekyll and Hide. In: English Literature, Bitesize. 2014. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/schools/gcsebitesize/english_literature/prosejekyllhyde/3prose_jekyllhyde_themerev4.shtml. Acessado em: 02 Ago 2017.
HOPCKE, Robert H. Guia para a obra completa de CG Jung. 3ª ed. Petrópolis: Vozes. 2012.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes. 1986.
JACOBI, Jolande. Complexo, arquétipo e símbolo na psicologia de CG Jung. 10ª ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1995.
PIERI, P. F. Dicionário junguiano (I. Storniolo, trad.). São Paulo: Paulus. 2002. Verbete: Complexo (pp. 101- 109).
STRANGE CASE OF DR JEKYLL AND MR HYDE. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2017. Disponível em:
SUPPIA, Alfredo Luiz. O médico e o monstro: há 120 anos, uma história inspiradora. Cienc. Cult., São Paulo , v. 57, n. 4, p. 56-57, Dec. 2005 . Disponível em:
NOTAS DE RODAPÉ
1 Trabalho apresentando na Pós-Graduação em Psicologia Analítica, UNIFENAS (2017). Orientadora: Profª. Drª Denise Amorelli Silveira – CRP 04/1777.