ARTIGO:
“ATÉ QUE PONTO PODE CHEGAR UM CONFLITO PSICOLÓGICO?
- uma análise do filme"Cisne Negro" à luz da psicologia Analítica
Marcelo dos Santos Ribeiro da Cunha
UNIFENAS (2017)
Introdução
O presente trabalho1 pretende analisar o filme “Cisne Negro” (2010), do diretor Darren Aronofsky, através dos conceitos da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung. Objetiva-se ilustrar, com os personagens e momentos da película, os arquétipos principais do psiquismo segundo, a Psicologia Junguiana.
O célebre autor italiano, Ítalo Calvino, define um clássico como aquele que, ao se ter contato pela primeira vez, parece já se tê-lo visto muitas vezes, e depois de muito conhecê-lo, ainda surpreende como da primeira vez (SCHUTT 2013). Podemos aventar que isso ocorra devido à maestria dessas obras em trabalhar com o familiar e desconhecido de cada um de nós, nossa matéria arquetípica. Pois tanto o conto de fadas alemão atribuído a E. T. A. Hoffmann – “O Cisne Negro” – quanto o balé que ele inspirou, de Tchaykovsky – “O Lago dos Cisnes” – como o filme em metalinguagem sobre a montagem desse balé parecem merecer o elogio de Calvino (PEREIRA 2011).
O filme tem como personagem principal, Nina, uma bailarina nova, que sonha com o estrelato e parece ser a mais dedicada da sua companhia. Ela se esforça para ocupar o papel principal do balé “O Lago dos Cisnes”, mas tem dificuldades em fazer o cisne negro.
DESENVOLVIMENTO
Nina Sayers (interpretada no filme pela famosa atriz Natalie Portman) é uma solitária e ingênua bailarina, que realiza as vontades e sonhos da sua mãe até nos mínimos detalhes. A filha parece ser continuidade da vida e do corpo da mãe: a porta do seu quarto não fecha, ela não tem privacidade. Por outro lado, a mãe passa a maior parte do seu tempo pintando quadros que têm a filha como tema, mas os traços do rosto dessa se confundem com os seus. Nina está sempre de branco durante o filme, e é tanto virgem de fato como virginal em atitude.
Já a mãe de Nina, Erica, é uma bailarina aposentada. Parece ter se apaixonado por alguém e engravidado de Nina, o que teria interrompido sua carreira – ou, pelo menos, ela crê assim, embora já tivesse 28 anos quando isso ocorrera. Ela está sempre de preto e é agressiva, frustrada e controladora: além dos seus quadros, preocupa-se somente com a carreira de bailarina da filha. Essa mãe idealizou a vida da sua filha como realização e continuação da sua: uma filha perfeita. E não permite que Nina faça nada que saia dos planos.
Embebida pela ansiedade da mãe, Nina também preocupa-se com a idade, e anseia o momento que estrelará na companhia de balé de Nova York, onde atua. Por outro lado, dá impressão de ter pouco contato com a vida inconsciente, que reclama atenção. Parece se rebelar contra o controle da mãe no próprio corpo: arranha-se e corta-se compulsiva e inconscientemente, tem hemorragias espontâneas nas costas, unhas das mãos e pés, como se descontasse em si o ódio que sente da sua extensão, a mãe, a quem não se permite odiar.
Nina se depara com Thomas Leroy, o diretor da companhia. Percebe que Nina tem a perfeição técnica e a singeleza para fazer o cisne branco, mas falta-lhe sedução, criatividade e sensualidade para fazer o cisne negro. Ela está repleta de técnica e esforço consciente, mas falta-lhe contato com o corpo da mulher Nina. Por isso ele a manda deixar a técnica de lado e lhe provoca a viver sua sexualidade.
Nina também encontra Lily, a nova bailarina da companhia. Totalmente oposta a Nina, sempre veste cores escuras, tem pouca técnica, mas muita sedução e criatividade, e chama a atenção de Thomas. Nina vive uma relação de amor e ódio por Lily. Ora são confundidas por irmãs em uma noitada. Por outro lado, no dia seguinte Nina quase perde o papel para Lily por ter chegado atrasado – e Lily não. Lily parece personificar a irmã sedutora do balé, que tenta roubar da personagem principal o amor do príncipe.
Nina significa, segundo o Dicionário de Nomes Próprios (NINA 2017), menina, graciosa. Nina é usado como o diminutivo de nomes como Antonina ou Ana – que no hebraico, significa graciosa. Do espanhol, pode representar o diminutivo para a palavra “menina”. A palavra lembra o verbo ninar, dormir. No italiano, “ninna” significa sono infantil (NINAR 2017).
No filme, Nina é realmente a “filhinha da mamãe”, graciosa, de feminilidade adormecida. Toda essa energia negativa e masculina da sua mãe impediu que ela se permitisse amadurecer, ter contato com seu próprio Animus, visto como violentador, perigoso. Um exemplo disso é que Erica desconfia do treinador, e quando a filha começa a agir com independência, repreende-a. Como em Withimont (2000), Nina está presa aos impulsos arquetípicos de adaptação à realidade exterior e a coletividade – sua Persona. Ela vive o personagem idealizado por sua mãe: “na infância, nosso papéis são determinados pelas expectativas paternas” para receber aprovação.
Porém é sabido que o crescimento exige a “morte dos pais”, simbolicamente. O Ego precisa se diferenciar da Persona para que a pessoa se torne consciente de si mesma. Como Nina não consegue sair dessa armadilha sozinha, devido ao poder materno, ela incorre em um “pseudo-ego”: uma vivência estereotipada de si, ela é a filhinha-bailarina apenas. Essa formação é tanto rígida quanto frágil, e por causa das pressões internas, pode beirar a psicose (Withimont 2000, p. 140). No filme vemos que Nina tem alucinações, vendo-se em preto e com tom mais agressivo. As visões, que se mesclam com cenas da realidade, mostram a versão sombria de Nina lutando para emergir, ou controlá-la. Ainda em Withimont temos que, quando a Persona não descola do Ego, é como se a roupa não saísse da pele, e em alguns casos sintomas psicossomáticos cutâneos se fazem presentes: a clínica coincidindo com a fantasia da película.
Já o diretor Thomas – que é Tomé, na tradução para o português – faz como o apóstolo: ele quer ver para crer. Entre uma posição perspicaz e perversa, usa da sedução para acordar Nina para seu Animus. Segundo Hopcke (2012, p. 104-107), Animus para Jung é o arquétipo que representa a contraparte masculina da mulher, geralmente mal desenvolvida. Apesar dessa natureza inferior, para Jung, os arquétipos contrassexuais deveriam ser guias para o Ego no seu conhecimento da vida interior. Na idealização que Nina faz da figura de Thomas, ela parece projetar seu Animus nele. Isso é uma vivência inferior e projetada do seu próprio arquétipo, mas na trama do filme, parece guiá-la nessa jornada de descolamento da Persona. Ao fazê-lo, confronta-se com sua Sombra.
É o que acontece na relação de Nina com Lily, em quem projeta e percebe seu lado sombrio: Lily tem o que falta a protagonista (ou falta espaço para emergir), sedução, criatividade, esperteza. É a amiga e a seduz, mas ao mesmo tempo tenta roubar-lhe o papel, e também seduz tanto o treinador quanto seu par na peça. Ao mesmo tempo em que a ameaça, ou parece controlá-la, ajuda-a a experimentar seu corpo e o prazer como mulher emancipada.
Na visão de Jung (1986), a Sombra :
“constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem dispender energias morais. Mas nesta tomada de consciência da sombra trata-se de reconhecer os aspectos obscuros da personalidade, tais como existem na realidade. Este ato é a base indispensável para qualquer tipo de autoconhecimento, por isso, via de regra, ele se defronta com considerável resistência. (...) esses traços possuem uma natureza emocional, uma certa autonomia, e consequentemente, são de tipo obsessivo, ou melhor, possessivo.” (p. 6 e 7).
O próprio nome, Lily, fala do aspecto sombrio. Se, na tradução para o português, significa apenas lírio, a flor, na etimologia seria um diminutivo para Lilian ou Lilith (LILY 2017). Lilith significa “da noite” (em acadiano), na mitologia assíria representava alguns demônios, e na tradição judaica, é a primeira esposa de Adão, que teria sido trocada por Eva por não se submeter a ele, decaindo do Éden junto com seus filhos, os espíritos malignos (LILITH 2017).
Na jornada de tentar a perfeição da interpretação do papel, Nina se vê obrigada a trabalhar com todos os seus lados, para que ambos os cisnes sejam bem interpretados: a vida (sincronicidade) a faz ter, obrigatoriamente, contato com sua Sombra: seja nos efeitos de ter ganhado o papel principal, e com ele a agressividade do grupo, ou em si mesma – nos sintomas corporais e nas visões – e nas projeções em Lily ou em Beth (a bailarina veterena que foi trocada por Nina), nos pequenos furtos que comete no camarim dessa última, e até ao encontrar um velho masturbador no metrô.
Com a pressão da estreia, as visões e sintomas cutâneos vão se acirrando. Nina teme Lily, que é sua substituta no espetáculo. No entanto Thomas lhe fala, que a única pessoa entre ela e o sucesso é ela mesma – ou melhor, poderia se dizer: sua Sombra. E é o que parece acontecer.
Nina possuidora de um Ego fraco, devido a pressão da estreia e da competição, tem uma alucinação de briga corporal com Lily e parece surtar durante o espetáculo e se matar. Ela também parecia, antes disso, estar perdendo peso e evitando comida, o que poderia denotar um transtorno alimentar. O fim do balé faz coincidir a morte da personagem com a da bailarina, ambas em suicídio, após uma bela apresentação.
CONCLUSÃO
Apesar de podermos ver Nina como uma paciente psiquiátrica, parece ser mais proveitoso vermos o filme (assim como o conto original), como uma metáfora para o desenvolvimento da psique.
Todo indivíduo precisa ter contato com sua Sombra para amadurecer psiquicamente e sair das amarras do ideal de Ego, projetado pelos pais, encorpado pela Persona. Isso inicia mais fortemente na adolescência, junto do desenvolvimento sexual e “morte dos pais”: Nina parece quebrar a mão de sua mãe para impedi-la de entrar no seu quarto.
Enquanto esse processo é retardado, ou impedido, a psique vai pressionar o Ego, através de imagens e situações sincrônicas, para que aconteça a assimilação desses conteúdos negligenciados pela consciência.
No entanto, o Ego sente esse processo como multilador, que ameaça sua vida, e de fato o faz: essa pressão destruirá sua personalidade como é no presente, e o Ego será forçado a sair da sua zona de controle e conforto. O Ego sente isso como em um acidente de carro (acontecido a Beth), pois de uma hora para outra é empurrado por uma força desconhecida, e perde a majestade e o controle da situação.
No entanto, diante da ação do campo de força da psique objetiva, ele pouco pode. E na briga entre o Ego consciente e as personalidades parciais que exigem integração, os últimos vencem: nas somatizações, nos sonhos e pesadelos, nos fatos coincidentes, e no sofrimento que fazem causar - e são capazes de trazer os pacientes aos consultórios.
Nina percebe, para sua surpresa, que quem ela matou não foi a Lily, mas si mesma. Temos a assimilação da Sombra: as caraterísticas atribuídas a outras pessoas são reconhecidas como suas, embora, a princípio, indesejáveis.
Quando o Ego aceita o processo, realmente uma morte acontece: o espelho se quebra, e com ele a imagem que tinha de si. O sofrimento do contato com a Sombra é perigoso, mas libertador, e libera muita energia, até então reprimida.
Como no conto original, relatado por Thomas nos ensaios, a morte é a única opção, e a princesa se entrega a ela por ser sua libertação: um indivíduo mais consciente e flexível pode ressurgir. A princesa sai do corpo do cisne, é libertada. Igual a morte, trazida pela serpente, ao Pequeno Príncipe (de obra homônima) – o fim do eterno Puer. O indivíduo se aproxima do que ele tem como devir, no processo de individuação, da sua essência. A pele de Persona é rasgada pelo cisne negro da Sombra. Nina fala: foi perfeito (que significa etimologicamente “todo feito, completo”) - o ser se aproximou mais da totalidade, do Self, no processo de individuação. O Ego cedeu seu lugar ao Self, arquétipo central organizador do psiquismo.
REFERÊNCIAS
HOPCKE, Robert H. Guia para a obra completa de CG Jung. 3ª ed. Petrópolis: Vozes. 2012.
JUNG, Carl Gustav. Aion: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. 2ª ed. Editora Vozes, 1986.
LILY. Dicionário de Nomes Próprios – significado dos nomes. 7Graus. Disponível: < https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/nina/>. Acesso em: 23-jun-2017.
LILITH. Dicionário de Nomes Próprios – significado dos nomes. 7Graus. Disponível: < https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/nina/>. Acesso em: 23-jun-2017.
NINA. Dicionário de Nomes Próprios – significado dos nomes. 7Graus. Disponível: < https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/nina/>. Acesso em: 23-jun-2017.
NINAR. Origem da Palavra – site de etimologia. Disponível: < http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/ninar/>. Acesso em: 23-jun-2017.
PEREIRA, Terezinha. Cisne Negro e O Lago dos Cisnes. Overmundo. Pará de Minas: 15-nov-2011. Disponível em: < http://www.overmundo.com.br/banco/cisne-negro-e-o-lago-dos-cisnes>. Acesso em: 23-jun-2017.
SCHUTT, Diego. 5 definições sobre livros clássicos de Italo Calvino. Ficção em Tópicos. 23-maio-2013. Disponível em: < http://ficcao.emtopicos.com/2013/05/livros-classicos/>. Acesso em: 23-jun-2017.
WITHIMONT, E. A busca do símbolo. Conceitos básicos da Psicologia Analítica. São Paulo: Cultrix, 2000.
NOTAS DE RODAPÈ
1 Trabalho apresentado na Pós-Graduação em Psicologia Analítica, UNIFENAS (2017). Orientador: Profª. Alessandro Caldonazzo Gomes – CRP 04/9244. Os conceitos junguianos (arquétipos) foram escritos em letra maiúscula apenas por motivos estilísticos.