ARTIGO:
“THE MATRIX” E A PSICOLOGIA JUNGUIANA —
A arte imitando a vida, no seu processo de individuação
Marcelo dos Santos Ribeiro Cunha
UFMG (2003)
Resumo
O presente trabalho objetiva analisar o filme de enorme sucesso mundial “The Matrix” (parte I), utilizando para tal o arcabouço teórico da Psicologia Analítica. O conceito chave que norteia o trabalho é o “processo de individuação”, um dos principais de Jung. Esse consiste de um longo processo psíquico a qual todos estamos submetidos — individual e globalmente — e que tem como objetivo o estabelecimento de uma conexão entre o ego e o self, com o alcance do equilíbrio dinâmico da psique. Existem motivos para pensarmos que se possa reconhecer os passos do processo de individuação na jornada do herói do filme escolhido. Ao analisarmos os arquétipos que o filme traz, a princípio, com base na classificação de MOORE & GILLETTE, fica claro a predominância da “psicologia do menino”, o que denota necessidade de amadurecimento. Isso se dá, no processo de individuação, como conceitua a psicologia analítica, pelo enfrentamento da “persona”, da “sombra”, da “ânima”, e do desenvolvimento do “self”. Ao se efetuar a análise do filme por seus elementos simbólicos, constatou-se grande coincidência dessas etapas com os símbolos apresentados pelo filme. Ainda se percebeu grande semelhança de certas cenas do filme com o relacionamento que se estabelece entre cliente e psicólogo, fundamental para o desencadeamento e evolução do processo de individuação. Tais dados foram relacionados com a crise que o mundo atravessa hoje, percebendo nela o problema da construção do masculino na sociedade moderna. Conclui-se o trabalho interpretando a película estudada como uma metáfora para o processo de individuação do planeta, no qual, uma saída possível para a crise da pós-modernidade é uma melhor acesso aos arquétipos do masculino amadurecido.
Apresentação oral, apresentada no Congresso Nacional de Estudantes de Psicologia (Aracaju, 2003). Orientador: Ms. Paulo José Baeta Pereira
Introdução
Os roteiristas de “The Matrix” participaram de um chat de discussão em 6 de novembro de 1999 (1), quando puderam discutir algumas rápidas questões com os fãs. Um dos “chatters “ perguntou:
- There are quite a few hidden messages in the movie that I notice the more I watch it. Can you tel me about how many there are? (calla)
- There are more than you’ll ever know. (Wachowskibros)
- What do the time 9:18 and the date 9/18 signify? Is this a personal reference? (calla)
- That’s my wife’s birthday. (Wachowskibros)
Esse filme enigmático, que envolveu e ainda tem intrigado milhares no planeta, é feito também disso: de mistério e irreverência. Na web page oficial americana existem 12 artigos de cientistas, cada um analisando o filme por um prisma diferente: budismo, tecnologia computacional, fenomenologia, filosofia clássica, etc.. Além desses, chats e artigos, em várias partes do mundo, também resolveram discutir essa saga, enquanto milhares esperam ansiosos o lançamento do episódio 3.
As possibilidades de interpretação dessa produção cultural são infinitas, devido sua riqueza de símbolos, enredo e diálogos. Continuando o trabalho realizado por uma análise mitológica do filme “1” dessa trilogia, a presente pesquisa visa analisá-lo, usando o instrumental conceitual da psicologia junguiana. Acredita-se que essa opção possa trazer boas contribuições para entendermos o psiquismo do público, que sucumbiu a essa comoção coletiva e milionária. O objetivo desse trabalho é saber como o processo de individuação está presente neste filme.
Como podemos ver em FADIMAN & FRAGER (2), um dos principais conceitos de Jung é o da "individuação". Ele usa esse termo para designar o processo de desenvolvimento humano que envolve o estabelecimento de uma conexão entre o ego, centro da consciência, e o self, centro da psique total, o qual, por sua vez, inclui tanto a consciência como o inconsciente. O objetivo deste processo é o "equilíbrio dinâmico", unificando e reconciliando polaridades. Consiste numa árdua e longa jornada, que compreende a aceitação de processos inconscientes e o movimento do ego, que deixa de ser o centro da personalidade. Esse caminho é formado por passos que se sucedem e entrelaçam, cada qual acompanhado de dificuldades que lhe são peculiares. Existem motivos para pensarmos que seja possível reconhecer tais passos, do processo de individuação, na jornada heróica aqui estudada. Elucidar esse aspecto do filme é o que tentaremos adiante.
O Filme
“The Matrix” é uma produção americana de 1999, recorde mundial de bilheteria e ganhador de 4 Oscars. Como pôde ser apresentado no primeiro trabalho sobre esse filme (análise mitológica), a escolha dessa película se deu graças ao seu enorme sucesso mundial. Acreditando que esse processo de identificação entre público e arte acontece, em grande parte, motivado por razões inconscientes (o que lhe possibilita a influência sobre as massas), pensou-se ser possível empreender uma análise do psiquismo coletivo no contexto do mundo atual ao analisarmos os elementos estruturais deste filme. Corroborando esse ponto de vista, temos nos escritos de Jung que:
“Poder-se-ia dizer que todo o mundo, com sua confusão e sua miséria, está num processo de individualização. No entanto, as pessoas não o sabem, esta é a única diferença. A individuação não é de modo algum uma coisa rara ou um luxo de poucos, mas aqueles que sabem que passam pelo processo são considerados afortunados. Desde que suficientemente conscientes, eles tiram algum proveito de tal processo.” (FADIMAN & FRAGER 2, p. 58).
Pretende-se ver como esse processo de identificação pode estar nos informando sobre o processo de individuação em que o mundo está inserido. Para tal, a simbologia e mitologia aludidas por esse filme muito nos ajudarão.
De forma resumida, apresentamos o enredo do filme, a seguir.
Sinopse
Thomas Anderson (Keanu Reeves) é um jovem programador em 1999. Ele trabalha para uma grande empresa de tecnologia, vive em um pequeno apartamento escuro, e tem uma vida que seria totalmente comum, caso não fosse sua identidade virtual Neo, e suas atividades no seu tempo livre como hacker. Sua vida tem sido angustiada por dúvidas sobre o que é a realidade, e hackers que lhe interceptam pelo computador prometem-lhe responder suas dúdivas. Por meio do encontro com os misteriosos Morpheus (Laurence Fishburne) e Trinity (Carrie-Anne Moss), Thomas descobre que é, assim como todas as outras pessoas do mundo, vítima do Matrix, um sistema computacional que manipula a mente das pessoas, criando a ilusão de um mundo real enquanto usa os cérebros e corpos dos indivíduos para produzir energia. Essa realidade fictícia foi criada pelas máquinas, que possuidoras de IA (inteligência artificial), voltaram-se contra os seres humanos e dominaram o planeta. Diante desse conflito, Morpheus está convencido de que Thomas é Neo, o profetizado messias, capaz de enfrentar o Matrix e conduzir as pessoas de volta à realidade e à liberdade. (Adaptado da web site “Adoro Cinema” 3).
A Análise
Em “Fundamentos da Psicologia Analítica” de JUNG (4), no cap. 5 temos :
“O que o inconsciente realmente contém são os grandes fatos coletivos do tempo. No inconsciente coletivo do indivíduo a própria história se prepara e quando alguns arquétipos são ativados num cento número de indivíduos, chegando à superfície, encontramo-nos no meio da corrente histórica (...). A imagem arquetípica que o momento necessita ganha vida e todo mundo é tomado por ela (...) ...nossa psicologia individual não passa de uma pele bem fina, uma pequena onda sobre um oceano de psicologia coletiva. (...) Os arquétipos são a grande força decisiva e produzem os fatos e não os nossos raciocínios pessoais e a nossa inteligência prática.”(pp. 206-207).
Enxergando dessa forma, faz-se mister identificar quais são essas “imagens primordiais” que têm representado nosso tempo. Para tal, analisaremos os principais arquétipos trazidos pelo filme.
Os arquétipos masculinos
Como a sinopse nos aponta, o filme acontece em torno do personagem Neo. Os outros personagens se definem na trama da história com base nas suas relações com ele. Dentre esses, podemos apontar mais quatro que dividem com ele o foco principal do enredo: Morpheus, Cypher, Trinity e o agente Smith. Deixando esses dois últimos para uma análise ulterior, trataremos aqui dos arquétipos masculinos protagonizadores. Para tal, usaremos as configurações básicas de arquétipos masculinos, conforme MOORE (5).
A princípio, não há dúvida de que Neo represente o Herói da história. Como podemos conceituar no primeiro trabalho, esse personagem aparece carregado das características identitárias do mito do herói, e também de traços messiânicos, definindo com clareza o arquétipo do Herói, que é o principal do filme, e que define seu enredo.
Ao seu lado, Neo tem Morpheus, que faz sua iniciação e lhe acompanha fielmente pela saga. Morpheus representa o arquétipo do Rei. Ele é o comandante do barco (que se chama Nabucodonosor, nome de um rei do Antigo Testamento), capas de integrar e liderar a tripulação. Representando o “bom rei”, é altruísta a ponto de dar sua vida por Neo (aprox. 1h20 de filme), e como os reis antigos, estava para ser morto por não ser mais capaz de representar o arquétipo — no caso, Tank ia desplugá-lo para evitar que entregasse as senhas de Sião aos agentes que lhe interrogavam, sendo Sião o reino que deveria proteger (1h33). No filme, esse personagem cumpre com as duas tarefas arquetípicas do Rei. A primeira é “ordenar”. Assim sendo, significa o centro organizador, é o símbolo supremo da luz da consciência, dos arquétipos masculinos. Pois, vemos no filme, a partir do min. 29, seu papel de trazer a consciência a Neo, libertando-o de um “dream world”. A segunda tarefa é “proporcionar fertilidade e benção”. Nesse aspecto, o que acontece com o Rei tem impacto sobre seu reino. “Quando o rei adoecia, ficava fraco ou impotente, o reino definhava” (p. 59). Pois justamente enquanto Morpheus está capturado pelos agentes e está sendo torturado, seu barco está em pleno colapso, com a perda de 3 tripulantes (Dozen, Apoc e Switch) e a missão, prestes a ser arrasada por Cypher. Como rei, é aquele que tranqüiliza (57’02) e dá esperança. É bom Guerrieiro também, sendo investido ainda por esse segundo arquétipo.
Podemos cogitar que o Neo também porte o Guerreiro, como Morpheus. Mas sua idade, sua incerteza quanto sua identidade e missão, e seu ciclo de iniciação, separação e retorno, como os outros fatores mitológicos, deixam claro que herói é o seu arquétipo mais nítido.
Quanto a Cypher, sendo o “Judas”, e por isso um masculino sombrio e traidor, ele é a “Criança precoce”, no seu aspecto sombrio: O Trapaceiro. Perito em criar aparências, seduz as pessoas e depois puxa-lhes o tapete. Faz brincadeiras de mau gosto e é manipulador. Isso é facilmente percebido na conversa entre Cypher e Trinity (1h27), quando, com as piadinhas ele anuncia a sua traição insuspeita e as mortes que cometerá. Em seu infantilismo, tem problemas com a autoridade (Cypher estava “cansado do papo-furado” de Morpheus). E como nesse arquétipo, ao derrubar a autoridade, Cypher não pensa em substituí-lo. Não deseja responsabilidade alguma, nem ganhar nada honestamente. Cypher, com os agentes: “Ignorance is a bless (...) I want to remember nothing (...) And I want to be rich. Some one important. Like an actor.” (1h03).
Com essas comparações, temos que os arquétipos masculinos do filme são predominantemente da "psicologia do menino", o que denota imaturidade no processo de individuação, com exceção apenas do Rei. O Herói, por mais nobre que seja, lembra-nos MOORE & GILLETTE (5, p. 37), "é apenas uma variedade avançada da psicologia do menino (...), o máximo no estágio da adolescência. Mas é imaturo". E sendo imaturo, necessitará de um processo de amadurecimento, individuação. Pois é isso que vemos se cumprir em sua trajetória, e que marcará o rumo do filme como um todo.
O processo de individuação
Segundo Jung, como já foi dito, o processo de individuação é marcado por etapas (2, p. 57-60). Nessas etapas, a consciência acaba por se relacionar com cada uma das partes importantes que compõem a sua personalidade, precisando integrá-los e harmonizá-los. A primeira se trata da persona.
A persona
Essa etapa se dá pelo desnudamento da persona. Presenciamos isso no filme no diálogo de Neo com o agente Smith na delegacia (aprox. min. 16). Este confronta-lhe, com dados sobre sua respeitável carreira de programador e a contraditória vida de hacker, dizendo-lhe: “One of these lives has a future, the other has not” (18’12). Com isso, o protagonista tem que escolher entre sua máscara — a aparência que apresenta para a sociedade, de fundo coletivo — e sua identidade mais autêntica. Sua resposta: “What do you think if I show you the finger?”. E depois de seu renascimento, com Morpheus, as velhas roupas e o nome Thomas Anderson serão superados definitivamente. Ficará apenas o nome do Herói.
A sombra
O próximo passo é o confronto com a sombra. Em FADIMAN & FRAGER (2, p. 57), temos: “ na medida em que nós aceitamos a realidade da sombra e dela nos distinguimos, podemos ficar livres de sua influência.” Quanto a essa etapa, a análise se torna mais complexa. No âmbito do individual, vemos que isso ocorre literalmente quando Neo entra para o “real world”. A conversa de Morpheus com Neo ilustra bem isso (min. 40 em diante). O mundo sombrio que lhe é apresentado consterna-lhe, a ponto de Neo não querer acreditar. Mas somente com esse despertar que o herói pôde nascer para sua batalha. No entanto, o elemento sombra não foi de todo superado ainda. Neo ainda terá que enfrentar os agentes: homens de preto que controlam a Matrix. Isso se complexifica se pensarmos que existem no filme elementos de sombra por todo o planeta: “We burned the sky” — o sol foi destruído. O filme tem iluminação toda sombria na parte do “real world”, principalmente nos “endless fields where human beens are no longer born. We are grown” (42’15). Dessa forma, vemos que, num sentido amplo, o filme todo passa-se nesse segundo passo da individuação, no enfrentamento da sombra planetária.
Nesse aspecto, ao pensarmos na perigosa cisão da personalidade que ocorre devido ao aumento da distância entre o consciente e o inconsciente - ao deixar de lado "a porção incompreensível, irracional da personalidade (JUNG 6, p. 426) - torna-se útil o conceito de complexo. Conforme JUNG 4, os complexos são provenientes da esfera sombria, tornando-se "personalidades parciais" dotados de "tensão e energia" próprios. E "na condição de esquizofrenia, eles se emancipam em relação ao controle consciente, a ponto de tornarem-se visíveis e audíveis" (p.101). Com a contribuição desse trecho, ficamos provocados a pensar então que as "máquinas", no filme, seriam o próprio complexo da humanidade. Criadas pelos homens ("controle consciente"), emancipam-se, tomando o controle do planeta, o que fez a sombra reinar por completo. Representam a esquizofrenia da humanidade, com os impulsos inconscientes totalmente cindidos da consciência. Um novo eu: "AI", sabendo que isso representa "Artificial Inteligence" no filme, mas também pode significar "one (a) ego (I)", m outro "eu", disputando o corpo-planeta Terra. Ou como Morpheus diz no min. 41, "a singular counsciouness", que dera origem a todas as outras máquinas.
Uma questão dessas, tão abrangente e intrincada, poderia fazer-nos desistir de continuar pensando na continuidade do processo de individuação no filme, visto que ela só se resolve com no fim da história. No entanto, como os passos do processo de individuação de Jung se sobrepõem como num "espiral" (FADIMAN & FRAGER), podemos passar para o próximo.
A Ânima
Agora temos o confronto com a ânima. Arquétipo que deve ser visto como uma pessoa real, com quem a consciência pode se comunicar e de quem pode aprender e sofrer influência. “Representa a parte sexual oposta de cada indivíduo”, sendo “o mediador fundamental entre os processos conscientes e inconscientes” e “a porta da criatividade na psique” (p. 55). Podemos vislumbrar a participação da personagem Trinity na história por esse ponto de vista. Representando o arquétipo orientado predominantemente para os processos internos, é ela que faz o primeiro contato da Resistência com Neo, provocando-o a refletir, e decidir por encontrar-se com Morpheus, para que pudesse descobrir o que é a Matrix:
- I know why you are here, why you hardly sleep, and, night after night, you sit at your computer. You are looking for him. (10’25).
Depois, será a personagem que salva e recolhe o herói, impedindo-o que saia do carro, após se defrontar com a agressividade de Switch:
- You know that road. You know exactly where it is. And I know it´s not where you wanna be. (23’18)
Após sua entrada para o "real world", irá alimentá-lo. Quando Neo decide salvar Morpheus sozinho, ela o repreende, coloca-se como seu superior na embarcação, e obriga-o a levá-la consigo, o que, do contrário, tornaria a missão suicida. E ao final, com um beijo, após uma declaração de amor, ela detona a ressurreição do herói.
Podemos perceber nessas falas reflexivas e intromissões de efeitos críticos, que Trinity representa a Ânima em seu confronto com o herói, dando-lhe sensatez, provocando-lhe a perceber coisas mais profundas do seu ser, auxiliando-lhe a encontrar seu poder interno, no momento mais difícil.
O self
O estágio final do processo é o desenvolvimento do self. Segundo FURLETTI (7):
“se um indivíduo lutou com eficácia e longamente com sua ânima, o inconsciente muda seu caráter dominante e aparece numa nova forma simbólica, representada pelo Si-mesmo — núcleo mais profundo da psique (...) representado por (...) uma sacerdotiza, uma feiticeira, (...), um guardião, um velho sábio, (...). (p. 3).
Nesse estágio, o self torna-se o novo ponto central da psique. O ego, ainda centro da consciência, deixa de ser o núcleo da personalidade. Sendo um ponto eqüidistante entre consciente e inconsciente, o self é aquilo que faz o contato do indivíduo com o sagrado, sua unicidade. No filme, o símbolo que mais claramente personifica o self é o oráculo. A princípio, Neo possui bastante resistência de vê-la, demonstrando a insegurança do ego infantil, que teme a perda de controle. Tal fato é satirizado pelo oráculo: “you have your own life, remember? You don’t believe in fate.” No entanto, como o desenvolvimento do self encaminha o indivíduo a ser aquilo que ele porta de vocação mais autêntica, as provocações do oráculo vão ajudar Neo - sem que ele se dê conta - a descobrir sua verdadeira identidade messiânica "The One" - que, no trocadilho, também significa "o único", apontando para o que há de autêntico no indivíduo, vocação de todo ser humano.
Por outro lado, já que o filme apresenta um processo de cisão da personalidade planetária, com a insurreição da sombra, podemos também procurar por um símbolo do self do indivíduo-planeta. Por essa via, as discussões que apresentamos no primeiro trabalho sobre Sião podem contribuir. Essa cidade é a última morada humana, origem da Resistência, de onde vem o arquétipo adulto do Rei e a promessa do messias (Sagrado). Fica perto do centro da Terra (onde ainda é quente), e as senhas que lhe dão acesso são guardadas com a vida. Esses sinais nos indicam tal cidade como um símbolo do self do planeta, de onde é capaz brotar força nova para superar o complexo ("AI") e trazer de novo a consciência (sol) ao indivíduo (planeta).
Com o auxílio desses quatro passos, fica muito bem ilustrado que existe uma grande semelhança entre o processo de individuação junguiano e a trajetória de "The Matrix". No entanto, no mundo moderno, tal processo é muito difícil de ocorrer naturalmente. Ele normalmente demanda terapia. É o que veremos, necessário para se encontrar o poder interno, no momento mais difícil.
O analista e o consultório
A conhecida "pill scene" ocorre a partir do min. 25:55 e diz do encontro crucial entre Neo e Morpheus, quando este lhe aponta um caminho para fora da Matrix. É uma sala antiga, num prédio, com 2 poltronas. Morpheus se oferece a Neo para libertá-lo de "a prision that you cannot smell ou touch. A prison for your mind" (27:30). Mas avisa-lhe que ele terá que ver isso por si mesmo. E tendo feito isso, não haverá como voltar atrás. Antes que Neo decida, Morpheus ainda lhe diz: "All I offer is the truth, nothing more". Neo aceita, e a partir de então sua sensação sobre o que é real ou não revolucionam-se. Então ele tem um novo e doloroso renascimento. Acorda do "útero" eletrônico que o mantinha na ilusão digital da Matrix. Dragado pelo barco, sente seus olhos doerem: "Why my eyes hurt?". Morpheus: "You´ve never used them before" (35:34). Ou seja, ele nunca tinha enxergado o mundo com os prórprios olhos, porque a vida "uterina" não lhe permitira.
Num segundo diálogo entre os dois, agora já no "real world", Morpheus faz perguntas e provacações a Neo sobre o que é a realidade e o que era a ilusão, e lhe diz: "You've been living in a dream world, Neo." O cenário muda totalmente algumas vezes, mas os dois continuam conversando nas mesmas 2 cadeiras da primeira cena. Morpheus, com essas conversas, vai conscientizando Neo sobre o que aconteceu ao passado da Terra e sobre a escravidão dos homens. Neo entra em crise, por um momento não quer aceitar a verdade. A conversa termina com Morpheus colocando sua esperança no surgimento do "The One", que fará a ilusão (Matrix) terminar.
As semelhanças dessas duas cenas com o processo analítico falam por si mesmas. O analista alerta e aponta o caminho, mas não pode decidir pelo paciente. Quando começado o tratamento, trata-se de uma busca pela verdade pessoal do indivíduo, que o faz ver o mundo de um jeito novo, com seus próprios olhos, livre das amarras familiares ("útero"), ou sociais ("escravidão"). No processo, normalmente, há crise, mas o que faz o paciente continuar esse caminho é a busca de sua autenticidade ("the one").
Morpheus ainda diz: "I'm trying to free your mind. But I can only show you the door. You are the one who have to walk trought it "52'40). E Morpheus também será responsável por levar Neo ao encontro com o Oráculo. Antes desse contexto, Neo, resistente, conversa com Morpheus:
- Does she know everything? (Neo).
- She would say she knows enough. (Morpheus)
- And she’s never wrong? (Neo).
- Try not to think in terms of right ou wrong. She’s a guide, Neo. She can help you to find the path. She’s a guide. (Morpheus)
- She helped you? (Neo).
- Yes. (Morpheus)
- What did she tell? (Neo).
- That I would find “The One”. (Morpheus)
Como numa situação analítica junguiana, Morpheus, conectado com Neo, aponta-lhe o caminho em direção ao self (representado pela mensagem do Oráculo). O ego do paciente demonstra sua resistência. Morpheus acalma-lhe, falando do caminho como o que ele mesmo trilhou. E como muitos pacientes, Neo que saber qual é a resposta do outro, quer a verdade pelo discurso do outro. Mas Morpheus responde-lhe falando de uma verdade singular, encontrada em cada um ("The One").
E numa conexão self-analista, o oráculo faz uma intervenção coerente com o que Morpheus tinha feito até então. Dá a Neo muitas perguntas e poucas respostas. E aponta-lhe uma plaqueta: "know thyself" - conheça te a ti mesmo. Ao fim, Morpheus, que o esperava do lado de fora, e tivera contado a sua resposta do oráculo para Neo, diz-lhe: "
What was said was for you, and you alone.
A Conclusão
Como todos podemos perceber, a entrada da humanidade no terceiro milênio tem se constituído numa jornada árdua e surpreendente. Com as antiga certezas abaladas, o caminho se tornou imprevisível, fazendo do discurso dos gurus apenas devaneios pretensiosos e imaginativos. E esse caminho novo que se abre, ao invés de trazer a motivação para a construção de um mundo novo, parece, antes disso, estar condenando a civilização a um estado de perplexidade e desesperança. Enfrentamos marcadamente um momento de crise, e da sua resolução dependerá o futuro do nosso planeta.
Como alguns trabalhos sobre a pós-modernidade nos informam, por um lado, acreditava-se que o futuro da civilização estava garantido pelos esforços da ciência. Essa, levando a cabo a batalha iniciada no Renascimento contra os conhecimentos “negativos”, religiosos, acabou por tornar o mundo relativista e secular, tirando do Sagrado o lugar que lhe era assegurado. No entanto, frustrando as expectativas sobre ela depositada, a ciência não foi capaz de construir o mundo mais feliz prometido. Embora tenhamos evoluído tanto em conhecimento e conforto, fica nítido que o acesso a tais avanços ficou limitado a uma pequena parcela dos povos, aumentando ainda mais a frustração mundial, agora, sem fé nem nos progressos da ciência que lhe são anunciados.
Por outro lado, o futuro do mundo parecia também estar entregue nas mãos dos avanços do capitalismo e da democracia . Prometendo um “lugar ao sol” a todos aqueles que trabalham com perseverança, e um mundo melhor a todas as nações que auxiliassem esses dois sistemas a conquistarem o planeta, acabaram por gerar grandes frustrações quando próximas de alcançarem suas hegemonias. Isso porque se tem percebido que a democracia, no seu modelo oficial, não tem sido suficiente para gerar um mundo mais justo e igualitário. A desigualdade se apresenta tanto nos países “bárbaros” como nos democráticos. Além disso, a vitória do capitalismo contra o “inimigo do mundo”, o socialismo, já foi conquistada há anos, mas isso não foi suficiente para fazer o mundo melhor. Ao contrário, a pobreza e problemas ecológicos se alastram, o fim de alguns recursos naturais se anuncia, e num mundo onde a produção nunca foi tão rápida e eficiente, faltam empregos e compradores.
É nesse cenário de desesperança e crise que o mundo atual se constrói. Esse ambiente é extremamente propício a ilusão. O entretenimento barato — que às vezes sai caro — usa dessas situações para causar identificação, dando ao público a negação da realidade que anseia, ao invés de ajudá-lo a enfrentar de forma criativa os conflitos que lhe aguardam no fim da sessão do cinema. Há séculos conhecemos a expressão “pão e circo”...
No entanto, sendo vista ou não, a crise continua a nos assolar. Ficamos diante de uma pós-modernidade esquizofrênica, que oscila entre extremos a busca desesperada por soluções certeiras. Temos os novos “messias”, prometidos e encarnados nos movimentos neopentecostais. Temos a ciência, prometendo dizer tudo sobre o ser humano a partir do seu genoma. Enfim, um mundo onde consciente e inconsciente ampliam suas distâncias, assim como os trabalhos corporais e os trabalhos intelectuais, as imagens (persona) e a essência (self, vendo nesse o Sagrado), o masculino e o feminino.
MOORE & GILLETE (5), ao falarem da crise mundial que enfrentamos, relacionam-na com a construção do masculino na sociedade moderna. Desprovidos de rituais de iniciação cuidadosamente elaborados, capazes de ajudarem os homens a fazerem sua transição para a condição humana, ficam esses confinados na “psicologia do menino”, oscilando entre momentos de agressividade e fraqueza. Conforme esse ponto de vista, isso é um dos motivos causadores do patriarcado e do machismo, e da exploração do homem sobre o homem.
“Ao nosso ver, o patriarcado não é a expressão de uma profunda e enraizada masculinidade, pois esta não é agressiva. O patriarcado é a expressão da masculinidade imatura. É a expressão da psicologia do Menino e, em parte, o lado da sombra — ou louco — da masculinidade. Expressa o homem atrofiado, fixado em níveis imaturos. (...) ...é uma agressão à masculinidade na sua plenitude, assim como à feminilidade no seu todo. Os que se prendem às estruturas e à dinâmica desse sistema buscam dominar igualmente homens e mulheres. (...) Os meninos temem as mulheres. E temem também os homens de verdade.(...) O patriarca não aceita o pleno desenvolvimento masculino de seus filhos ou de seus subordinados, da mesma forma que (...) o (...) de suas filhas ou de suas funcionárias.” (introdução).
Para sair desse quadro desolador, com o qual estamos tão acostumados a ver em nossas relações de gênero e profissionais, ao contrário do que poderíamos pensar, esse autores propõe uma saída curiosa:
“O que está faltando não é, em geral, o que muitos psicólogos profundos supõem; isto é, a ligação adequada com o lado feminino interior. Em muitos casos, esses homens que vêm buscar ajuda foram, e continuam sendo, esmagados pelo feminino. O que lhes faltou foi a ligação adequada com as energias masculinas produndas e instintivas, com o potencial da masculinidade amadurecida. Tiveram essa ligação bloqueada pelo próprio patriarcado, e pela crítica feminista à pouca masculinidade que ainda lhes restava. E estavam sendo bloqueados pela falta (...) de qualquer processo de iniciação transformador e significativo através do qual pudessem alcançar um sentido da masculinidade.”(introdução).
Para que os potenciais masculinos amadurecidos possam ser acionados, os “pseudo-rituais” de iniciação da nossa sociedade não são suficientes, alertam-nos esses autores. O espaço do sagrado se faz necessário para tal passagem, assim como também da “morte” simbólica e psicológica, que faz o ego sair da posição central da personalidade. Infelizmente, em nossa sociedade, são poucas as saídas que vem ao encontro desse problema psicológico, tão crucial em nossa atual crise planetária. Cada um tem que buscar sozinho, ou com a ajuda de poucos, as fontes profundas dos potenciais de sua psiquê.
Nesse difícil caminho a percorrer, os símbolos apresentam enorme importância. Ao relacionarem-se com os arquétipos, presentes em todas as pessoas pelo inconsciente coletivo, ajudam-nos a nos conectar com essas imagens primordiais e seus potenciais transformadores, mesmo que não nos demos conta disso. É nesse ínterim que vem ao nosso auxílio os conceitos de Jung (4) de “processo de individuação” e suas reflexões sobre o inconsciente coletivo. Sabendo que as psicologia individuais são apenas uma “pele bem fina, uma pequena onda sobre o oceano de psicologia coletiva” (p. 206-207), e que saídas individuais não vão ajudar o planeta a enfrentar sua crise, temos então nos arquétipos uma saída. Fazendo uma análise dos símbolos de natureza arquetípica que têm se destacado mundialmente, podemos conhecer melhor como a psiquê coletiva tem enfrentado seu processo de individuação, ajudando-lhe a se situar na “corrente histórica” (p.206). Foi com esse intuito que o presente trabalho desenvolveu sua pesquisa.
Se, ao invés de ficarmos mergulhados nos modelos de identificação que os arquétipos nos apresentam, pudermos usar seus modelos para inspirar-nos a realizar as transformações necessárias em nosso mundo (BRANDÃO 8), soluções para a crise global aparecerão com muito mais facilidade. Mas para isso, é necessário superar a alegoria e o simples entretenimento, e usar obras de arte como “The Matrix”, entre outros instrumentos, como situações de auto-reflexão da sociedade, que permitam-lhe se conscientizar de seu processo de individuação e tirar proveito dessa apreensão. Superando o aspecto sombrio que parece dominar a figura do masculino na nossa sociedade, e investindo na construção de espaços onde seja possível a transição da psicologia do menino para a do adulto, a transformação do “herói” em “guerreiro” e “rei”, e o contato com o autêntico e o Sagrado, o mundo terá mais chance de vencer sua “esquizofrenia” pós-moderna e encontrar de novo o caminho da esperança realista, rumo um mundo melhor vivido e aproveitado por todos.
Referência Bibliográfica
- Web site: www.whatisthematrix.warnerbros.com
- FADIMAN, James & FRAGER, Robert. Teorias da Personalidade. Cap.: C. G. Jung e a Psicologia Analítica. São Paulo: Ed. Harbra ltda., 1986.
- Web site “Adoro Cinema”: www.adorocinema.com/filmes/matrix/matrix.htm
- JUNG, C. G.. Fundamentos da Psicologia Analítica — As conferências de Tavistock. Petrópolis: Ed. Vozes, 1972.
- MOORE, Robert & GILLETTE, Douglas. Rei, Guerreiro, Mago, Amante: a redescoberta dos arquétipos do masculino. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1993.
- JUNG, C. G.. Símbolos da Transformação. Petrópolis: Ed. Vozes, 1973.
- FURLETTI, Italo J.. Análise dos Sonhos — a estrutura psíquica. Apostila do curso: Análise dos Sonhos. Belo Horizonte: edição própria, 2001.
- BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega.Petrópolis: Ed. Vozes, 1984. Vol. III (pp. 9-11).